Conheci a Artesanal Cia de Teatro antes da pandemia, pois apresentaram dois espetáculos que me chamaram atenção: “Tatá - o travesseiro” e “Quando as pessoas andam em círculos”.
Mas, com a pandemia, tive a oportunidade de conhecer obras magníficas, como "Ludwig/2", "Adágio", "O Homem que Amava Caixas" e outros. Escrevi sobre todos os que assisti na plataforma virtual, pois - mais uma vez -, os passarinhos queriam voar. Enquanto eu não abria a porta da gaiola, eles me incomodavam, porque é exatamente assim que ficam minhas emoções enquanto não escrevo sobre as montagens que assisto e me atravessam com amor e poesia.
Pode-se dizer que a Artesanal é conhecida por levar ao público espetáculos com estéticas impecáveis, são privilegiados com a criatividade. São exímios em fazer o teatro infantil, mas suas peças falam a todos. Exatamente por isso, eles estão aqui. São mais de vinte anos no mercado, na verdade farão vinte e oito anos em 2023. Demoraram um pouco para retornar, mas no próximo mês eles estarão no Centro Cultural do Banco do Brasil, aqui no Rio de Janeiro, no dia 13 de maio, e depois seguem para o Distrito Federal, Belo Horizonte e São Paulo. "Azul" é o nome do próximo espetáculo. Gustavo Bicalho conversou com a Coluna "Olhar Teatral", do Portal Eu, Rio!, sobre essa nova trajetória, uma nova viagem na qual embarcaremos juntos.
Portal Eu, Rio!: Ei, Gustavo, que maravilha é ter você aqui conosco. Depois desse tempinho sem vocês, posso dizer que estou ansiosa para vê-los no palco. Como está o coração e a cabeça? E esses vinte e oito anos de carreira, algo que te marcou, que marcou essa companhia? E o Henrique, seu parceiro de vida, de trabalho, como você vê esse profissional para a Artesanal?
Gustavo Bicalho: Obrigado pela oportunidade de falar um pouco sobre nossa experiência. Oxalá eu consiga resumir um pouco esses 28 anos em poucas linhas, ou a entrevista ia ficar muito grande (risos). Foram muitas montagens, muitas inquietações, o amadurecimento não só do trabalho, como também das nossas inquietações. E dividir tudo isso com o Henrique, como você mesma apontou, meu parceiro de vida, sempre foi um privilégio. Mesmo tendo uma personalidade bem diversa da minha, as ideias sempre se complementaram e acho que este é um dos motivos dos nossos trabalhos conseguirem esta firmeza. Embora seja um pouco injusto dizer que isso é mérito só nosso, já que todo nosso resultado é fruto de um trabalho em equipe. Não só aceitamos, como estimulamos, o processo criativo de todos nossos parceiros e deixamos a escuta aberta para sugestões, elogios e críticas. É impressionante quando olhamos para trás e vemos a ingenuidade de nossas primeiras produções. E é bem provável que, em alguns anos, a gente olhe novamente para trás e perceba que esta ingenuidade nunca nos abandonou.
Você nos pergunta sobre o que mais nos marcou nesta trajetória e acho que a resposta ideal é o fato de conseguirmos manter a ingenuidade, mesmo depois de tanto tempo e desafios.
PER: Quase todas as companhias já retornaram aos palcos. A Artesanal parece ser a última a voltar. Não fica com receio das nossas expectativas?
GB: Não. Por um momento eu cheguei a acreditar que não voltaríamos mais. Mas a sensação de dever cumprido nos tranquilizava. O Brasil mudou muito nesses 28 anos e, infelizmente, não apenas para melhor. O fato é que sempre buscamos ser progressistas, mesmo num certo conservadorismo que é necessário ter no teatro infantil. Subverter temas e linguagens é maravilhoso, mas quando fazemos isso também para crianças, temos de entender que há um processo simbólico importante de ser seguido. É assim desde sempre. Podemos buscar novas formas narrativas, mas a dramaturgia, em si, é atemporal e já foi bastante pensada pela filosofia e pela psicologia. Quando acolhemos as crianças na história que estamos narrando, sabemos que estamos trabalhando num universo simbólico importante, que cumpre um papel no aprendizado da criança. Esta é a função da mitologia e da narrativa. Trazer um significado, mesmo que simbólico, para nossas experiências e municiar o ser humano de instrumentos necessários para cumprir sua trajetória “heroica” na vida.
No teatro dito “adulto”, mesmo que quebrar essas regras seja tão desafiador quanto, já estamos falando com uma plateia que, bem ou mal, tem mais instrumentos simbólicos para lidar com as questões da vida. E, no teatro infantil, temos que apresentar estas questões para deixar a criança elaborar suas convicções e crenças, sem que este seja um processo doloroso. Isto não quer dizer que é mais difícil ou mais fácil. É apenas diferente.
PER: A Cia tem uma trajetória lindíssima, dentro e fora do Brasil. Esse espetáculo, depois de tanto tempo parado, te traz uma sensação diferente? Pode falar sobre?
GB: Estamos vivendo um processo novo na construção deste espetáculo que, acho, é fruto de uma nova configuração que a própria pandemia trouxe. Antes, tínhamos uma ideia mais fechada sobre a encenação e íamos recebendo os bonecos, máscaras e adereços durante o processo dos ensaios. Desta vez, muitas coisas foram definidas durante este tempo e estávamos muito mais abertos às novidades, que normalmente acontecem durante os ensaios, desde atrasos a mudança de conceitos. Acho que normalmente é assim, mas não é o processo que vivemos dentro da Cia. Alinhar o tempo de ensaios com o da criação foi uma sensação diferente. Talvez, porque eu e Henrique tenhamos trabalhado no audiovisual, antes de irmos para o teatro. A necessidade de ter esse conceito fechado com antecedência sempre fez parte da nossa forma de conduzir a encenação. Mas, desta vez, muitas coisas foram acontecendo dentro deste tempo mágico do teatro. Embora, é claro, há apenas duas semanas da estreia, já fechamos o espetáculo e sua encenação. Mas entrar nesse universo do "Azul" sem ter tanta certeza sobre o que nos espera à frente, foi fundamental para que esse fosse um espetáculo totalmente novo. Mas de qualquer forma, não foi um processo aberto, já que trabalhamos com cronogramas e orçamentos, que pedem uma preparação prévia. Mas estávamos mais abertos a deixar que novos elementos surgissem dentro da sala de ensaio. Assim, muitas coisas novas foram incorporadas ao espetáculo final.
Um exemplo: eu normalmente defino a trilha antes mesmo de começar a ensaiar. Só que, desta vez, ela veio aparecendo para mim, de forma quase mágica. Muitas vezes, como sugestão do Youtube. Assim, peças musicais que me eram desconhecidas foram incorporadas ao espetáculo final, até mesmo porque eu ainda não tinha fechado o conceito final da trilha.
PER: Quase todas as companhias fizeram trabalhos online, uma espécie de teatro virtual. Vocês não seguiram nesse caminho. No entanto, obras como "Adágio", "Ludwig/2" e "O Homem que Amava Caixas" estiveram em plataformas virtuais, nos ajudando a ficar em casa, nos entretendo em um dos piores momentos de nossas vidas. Como foi essa experiência, perto e longe do seu público? Teve retorno dele?
GB: Sim. "Ludwig/2", um trabalho feito de forma despretensiosa numa residência artística na Alemanha, foi um dos espetáculos que mais teve retorno. Até mesmo porque parte dele é falado em alemão, língua que um dos atores dominava (eu falo alguma coisa, mas longe de poder construir um texto todo em alemão). Este foi um espetáculo em que o trabalho em equipe foi fundamental. Tivemos ajuda de uma diretora alemã, que é nossa amiga há anos, e de um ator alemão que também integrava o elenco e é professor de línguas. Seria impossível chegar ao texto final sem eles.
Mas não ter feito nenhuma experiência para as plataformas digitais foi uma escolha. Eu tenho formação em cinema e estou no processo de escrever meu primeiro curta, que pretendo realizar ainda este ano (ou no mais tardar, no início do próximo ano).
A pandemia me trouxe a oportunidade de voltar a assistir muito cinema em casa, não só pela Netflix, como também pela Amazon Prime, HBO, MUBI, entre outras. E isso me colocou novamente mais próximo da linguagem cinematográfica, que amo.
Nós não conseguiríamos produzir nada sem trazer este rigor que o cinema exige, até porque é de onde viemos. Não como criadores, mas como produtores, figurinistas e técnicos.
Mas vi muitos trabalhos que me impressionaram bastante, por propor uma narrativa diversa da que estamos acostumados. No entanto, ainda acho que este é um campo que precisa de mais estudo e pesquisa.
PER: Para os trabalhadores no setor cultural foram anos dificílimos. Isso desanimou a Artesanal em algum momento? Aonde vocês depositaram as esperanças?
GB: Como eu disse antes, achávamos que tínhamos chegado ao fim da linha. Mas a sensação de que havíamos contribuído, de alguma forma, com o teatro infanto-juvenil no Brasil, era bastante reconfortante. Mas sabíamos que qualquer outro movimento nosso seria dentro das artes.
PER: "Azul" chega aos palcos este mês. O que você pode nos contar sobre esse espetáculo? São três anos de pesquisa, aonde você quer nos levar? Essa obra tem algo a ver com o enclausuramento?
GB: "Azul" nasceu da primeira parceria que tive com a Andrea Batitucci na escrita teatral, que aconteceu em 2016. Desta forma, a peça levou quase sete anos para ser gestada. Mas, a primeira oportunidade em que ela teve para vir aos palcos aconteceu em 2019, quando fomos contemplados com o Edital do CCBB. Porém, em 2020, após diversos reveses provocados pela Secretaria de Cultura, não conseguimos manter a parceria com o patrocinador e perdemos a oportunidade de estrear em 2021. Mas o projeto nunca morreu e sempre foi fomentado, tanto por mim e pela Andrea (trabalhávamos em um roteiro para animação), quanto pelo próprio CCBB. E depois desse tempo todo, ele ganhou vida.
Quanto ao espetáculo, ele fala sobre a relação de uma menina (Violeta) com Azul, seu irmão mais novo, que depois de um tempo é diagnosticado no espectro autista. Porém, mesmo tendo um personagem neuro-atípico, a peça não fala sobre isso. Ela fala sobre o processo que os irmãos mais velhos precisam passar para absorver a chegada de um irmão mais novo, que vai tomar parte do tempo e da atenção paternas.
PER: Em dias tão conturbados, onde enxergamos uma educação tão desvalorizada, pergunto: qual a conexão entre "Azul" e a educação? Você acha que a peça pode agregar de alguma forma, educacionalmente, para o indivíduo que multiplica tantas ideias, como as crianças?
GB: Acredito que sim. Como eu apontei antes, o teatro infanto-juvenil é um instrumento (excelente, diga-se de passagem) para a formação simbólica do indivíduo. Eu insisto muito nessa questão dos mitos e símbolos, porque eles são até mais antigos do que a própria linguagem. Se há algo de sagrado nas artes, é exatamente esta conexão com a ancestralidade. Não importa que, no Século XXI, estejamos em busca de novos mitos que deem conta de toda a complexidade da modernidade, eles irão surgir como processo natural da narrativa. Mas a necessidade de contar histórias, de trazer significado à nossa existência, é a fagulha que inicia todo e qualquer processo artístico.
PER: O teatro parece estar perdendo forças, quando falamos de público. A Artesanal pensa sobre isso? Quais as iniciativas que a Cia toma em relação a este comportamento da sociedade?
GB: O fim do teatro sempre foi anunciado, mas não sei se ele vai acontecer, porque o teatro é necessário como instrumento político (no sentido mais literal da palavra, da “pólis” e do exercício da cidadania). O cinema, quando surgiu, era um mero registro documental de pequenos incidentes cotidianos (a chegada de um trem, trabalhadores saindo de uma fábrica, carruagens cruzando as ruas das grandes cidades, etc.). Quando ele alcançou o entendimento da narrativa, tentou, inicialmente, reproduzir o teatro (embora gênios disruptivos já indicassem um caminho alternativo para a linguagem cinematográfica, como Géorge Méliès, por exemplo). Foi através da mudança de enquadramentos e da montagem que o cinema encontrou uma forma narrativa própria. E se o cinema, antes, era apenas um interlúdio entre as cenas do vaudeville parisiense (e, consequentemente, exibido entre números teatrais), ele acabou ganhando um espaço próprio nas artes. E havia o gramofone, e depois o rádio, a TV, o cinemascope, as telas de plasma, etc. E o teatro sempre se sentiu ameaçado por essas novas tecnologias e formas narrativas. Mas nunca morreu, porque para acontecer precisa da troca humana, do artista e da plateia.
Acho que o problema que enfrentamos com o público decorre do fato do teatro ter abandonado, de certa forma, a crença em sua própria força. E essa é uma realidade brasileira, que não vemos em outros países do velho e novo continente. Na Alemanha, por exemplo, o teatro é bastante forte como cultura. Seja uma peça, um balé ou uma ópera, os ingressos são disputados à tapas. Há uma forte presença do poder público para que isto aconteça, mas não há a mesma dependência do setor cultural nas políticas públicas. Precisamos entender isso para avançar de fato. Reforçar os instrumentos legais de financiamento para produzir mais, mas fortalecendo, principalmente, a distribuição e a comunicação com o público-alvo. E precisamos investir em novos dramaturgos e produtores. É impressionante que um país que teve Oduvaldo Vianna Filho, Nélson Rodrigues, Mauro Rasi e Augusto Boal pareça padecer de novas forças criativas (e digo pareça padecer, porque, de fato, não padece).
Porém, em um país recém-ameaçado por um novo arroubo autocrático, a arte é sempre vista como uma ameaça. E a TV também teve um papel fundamental para a desestruturação das artes no nosso país. Porém, esta mesma TV não consegue se reinventar e perde força na repetição de fórmulas e conteúdos que já não atraem como antes. É o espaço que o teatro pode voltar a ocupar, pois não sofre de uma autocensura que prejudica o próprio produto cultural. Temos, também, uma revolução vinda das periferias que ainda não alcançou sua força total. Essa é a grande oportunidade que o teatro tem para mostrar sua força. Mas, se esse momento vai ser aproveitado ou não, é um exercício de futurologia que não temos como fazer. Torço para que sim. Tentamos fazer diferença com as nossas produções e sentimos haver uma plateia disposta a participar desta “retomada” cultural. Acho que é a tentativa e o erro que vão impulsionar as novas produções culturais brasileiras.
PER: Para quem trabalha com crianças, você vê malefício em relação à educação virtual? Em relação à internet sem freios a essas crianças? Vê isso como um obstáculo para o teatro?
GB: De forma alguma. A internet e as redes sociais estão sofrendo um processo natural de amadurecimento e depuração de seu conteúdo. A democratização da comunicação é a mais importante revolução do século. Quando eu teria acesso ao conteúdo produzido por jovens das favelas e das periferias brasileiras sem o Youtube e o Tik-Tok? Precisaríamos de muitos projetos culturais caríssimos para impulsionar as artes e a criatividade nesses lugares. Não é porque ainda não vemos tanto conteúdo relevante nestes veículos que temos de demonizá-los. Muito pelo contrário. A comunicação nunca esteve tão forte. O que perdeu a força foram seus meios de financiamento (e controle), como a publicidade, por exemplo.
É claro que eu entendo que ninguém mais aguenta ver uma “dancinha” no Tik-Tok. Mas tem muita coisa surgindo nessas plataformas, com potencial suficiente para ganhar relevância. É só uma questão de tempo. Embora essa seja apenas uma opinião.
PER: Você acha que "Azul" pode incentivar uma criança a ter outra forma de pensar?
GB: Não temos essa pretensão. Embora o teatro tenha essa força de provocar mudanças. Mas se isso acontecer, será por uma via natural. "Azul" é uma história que fala sobre como somos diversos e que não há mal nenhum nisso. Mas aceitar, ou não, a diversidade (no caso, a neurodiversidade) é fruto de uma educação muito mais ampla, que começa em casa, contínua na escola e depois nos meios de comunicação e entretenimento. É a ação conjunta destes meios que provocam mudanças.
PER: A tecnologia está cada dia mais avançada, mas o teatro é uma das linguagens que não acompanha esse avanço. Como você enxerga isso?
GB: Eu não sei se precisamos acompanhar esse avanço. O bonito do teatro é sua pureza. Ou melhor dizendo, temos que usar a tecnologia naquilo que ela pode auxiliar em contar melhores histórias. Mas, a força de uma história está em sua narrativa. Temos de buscar narrativas melhores e menos apoios tecnológicos. Por outro lado, se minha narrativa pede o uso da tecnologia, por que não? O National Theater of London tem uma montagem excepcional de “A Vida de Pi”, com bastante projeções mapeadas de vídeo e cenários que mudam sem que a gente perceba. E é incrível! E acredito que esta história precise destes efeitos para alcançar seu potencial máximo! Porém, a mesma companhia tem diversas encenações que não usam nenhum elemento tecnológico e que também são incríveis. Mas o teatro não precisa, necessariamente, da tecnológica para acontecer.
PER: Estamos conectados o tempo inteiro, em constante conexão. Quando entro no metrô, confesso que todos estão “conectados”. No entanto, jovens e adultos não enxergam pessoas com mais de 80 anos, em pé, precisando sentar-se. Dentro dessa realidade cruel, você acha que o teatro pode contribuir para mudanças significativas?
GB: Esse é um problema humanitário. Precisamos de mais humanidade, não de menos tecnologia. Temos que ser cautelosos quando estamos falando da tecnologia. Por exemplo, o impacto da inteligência artificial nos meios de produção atuais é inquestionável. Neste caso, a tecnologia nos ameaça, enquanto espécie. A questão não está em abolir a inovação e sim em preparar a sociedade para recebê-la de forma menos disruptiva. Mas, sinceramente, acho que a evolução acontece em saltos. A humanidade não estava preparada para a revolução industrial, e a produção de bens de consumo atingiu uma escala que ameaça a sustentabilidade da vida em nosso planeta. O que fazer? Nesse caso, a I.A. não pode nos ajudar a encontrar uma resposta? Ou seja, vivemos sempre em paradoxos, que só podem ser resolvidos com consciência humanitária e ética.
Obrigada, Gustavo! Estamos na torcida por "Azul"! Que a peça possa transformar, nos oferecer asas para outras direções, principalmente a do afeto, que tanto precisamos!